Censo 2022: O que houve de errado?

Houve certo rebuliço nas redes sociais, quando do lançamento dos dados mais recentes do Censo Demográfico de 2022. O fato carregado na maior parte das manchetes do Brasil foi a queda na população brasileira. Até 2021, projetava-se que a população brasileira estivesse em torno de 213 milhões de habitantes. O número que o Censo trouxe foi de 203 milhões, queda de 10 milhões de habitantes em relação ao previsto.
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Author

Vinicius Oike

Published

November 17, 2023

Censo 2022

Houve certo rebuliço nas redes sociais, quando do lançamento dos dados mais recentes do Censo Demográfico de 2022. O fato carregado na maior parte das manchetes do Brasil foi a queda no número projetado da população brasileira. Até 2021, projetava-se que a população brasileira estivesse em torno de 213 milhões de habitantes, segundo a pesquisa Estimativas da População do IBGE. O número que o Censo trouxe foi de 203 milhões, ou seja, houve uma queda de 10 milhões de habitantes em relação ao previsto. Ainda que pareça grande, o “erro de projeção” foi de menos de 5%. Contudo, é importante entender por que este número foi subestimado.

O contexto da pesquisa

Cortes de orçamento, pandemia e atrasos

Mesmo antes da divulgação dos primeiros dados de população, a mais recente edição do Censo enfrentou diversos problemas. A eclosão da Pandemia Covid-19, em 2020, forçou o adiamento da pesquisa para o ano seguinte; em 2021, contudo, o orçamento do Censo, originalmente de R$2 bilhão foi reduzido em mais de 90%, efetivamente impossibilitando a sua execução. Inicialmente, previa-se que haveria cerca de 200 mil recenseadores em operação: na prática, houve menos da metade, em torno de 91 mil; além disso, a redução do orçamento comprometeu o treinamento destes funcionários. A situação chegou a tal ponto que se decretou uma medida provisória permitindo a contratação de recenseadores sem processo seletivo algum.

O processo de coleta dos dados enfrentou diversos atrasos, sobretudo em função do número insuficiente de recenseadores em campo. A falta de verba também comprometeu o pagamento destes funcionários, que chegaram a organizar uma greve em setembro de 2022, em resposta às más condições de trabalho.

Não-respondentes

A fraca divulgação do Censo na imprensa, junto com a politização da pesquisa e a propagação de fake news, reduziu a adesão da população à pesquisa. A taxa geral de não-resposta foi de 4,23%, mas chegou a 8,11% no estado de São Paulo; em alguns municípios como Santana de Parnaíba, na Região Metropolitana de São Paulo, esta taxa chegou a 16,8%1. O problema foi particularmente severo nos domicílios de alta renda e condomínios fechados; também há evidência de que cidades, com maior proporção de votos para Bolsonaro no 2o turno , tiveram menor adesão ao Censo.

O Censo e o FPM

Por fim, como os dados de população de municípios têm um impacto direto sobre o repasse do Fundo de Participação de Municípios as prefeitura tem um incentivo perverso para distorcer os dados populacionais. De fato, o economista Leonardo Monastério verificou que isto já aconteceu em Censos anteriores e que o problema vem se agravando com o tempo. No histograma abaixo, retirado do trabalho original, vê-se que há quebras suspeitas nos valores da população que coincidem as faixas do FPM. Será interessante replicar o experimento para os dados atuais do Censo.

Reprodução de gráfico de Monasterio (2013)

Balanço do Censo

O Censo enfrentou diversos problemas:

  1. Pandemia do Covid-19, cortes no orçamento e mudanças na presidência. Além de gerar atrasos na pesquisa, os cortes comprometeram a capacidade de contratação e treinamento de funcionários.
  2. Fraca divulgação da pesquisa e menor adesão da população. Autoridades importantes do governo, como o próprio presidente da república à época minaram a credibilidade do IBGE publicamente.

A ex-presidente do IBGE, Wasmália Bivar, avalia que o corte de orçamento comprometeu a pesquisa e que a subestimação da população era esperada. Já Roberto Olinto, também ex-presidente do instituto, pediu por uma auditoria do Censo, chegando a sugerir a possibilidade de ser necessário refazer a pesquisa. Apesar de todas as dificuldades, os representantes do IBGE defendem que o número divulgado é confiável e avaliam que o Censo foi um sucesso, quando se considera todos os desafios que foram enfrentados.

A matemática da população

Método das Componentes Demográficas

A fórmula da dinâmica populacional é bastante simples. A população num determinado ano é igual à população do ano anterior somada da variação populacional. Esta variação populacional é o (1) número total de nascimentos, (2) óbitos, (3) imigrantes e emigrantes.

Formalmente, seja a população no ano seguinte denotada por \(P_{t+1}\) e população no ano corrente, \(P_{t}\). A partir deste número, soma-se o total de nascimentos \(B_{t, t+1}\), subtrai-se o total de óbitos \(D_{t, t+1}\) e soma-se o fluxo líquido de migrantes \(NM_{t, t+1}\) . A equação abaixo resume estes fatos:

\[ P_{t+1} = P_{t} + B_{t,t+1} - D_{t,t+1} + NM_{t,t+1} \]

O IBGE tem boas maneiras de estimar estes números:

  • O número de nascimentos, \(B_{t, t+1}\), é uma função da taxa de fertilidade e do número de mulheres em idade fértil;
  • O número de óbitos, \(D_{t,t+1}\), similarmente, pode ser estimado a partir de tábuas atuariais de mortalidade, discriminadas por grupos de idade e sexo;
  • Por fim, ainda que seja difícil quantificar o fluxo migratório, \(NM_{t,t+1}\), ele tem pouco impacto no número final, no caso do Brasil2.

A projeção da população, segundo a equação acima, é chamada de Método das Componentes Demográficas. Esta metodologia tem amplo respaldo teórico3 e é utilizada na pesquisa Projeções da População do IBGE. Na mais recente edição divulgada, de 2018, a projeção populacional do Brasil para 2022 é de 214,8 milhões de habitantes.

O Método das Componentes Demográficas também é utilizado pela Organização das Nações Unidas (ONU). Na edição de 2019 do World Population Prospects, projetava-se que a população do Brasil deveria chegar a 219 milhões de habitantes em 2025. Este número é muito próximo ao projetado pelo Projeções da População, citado acima. Segundo os dados do Censo, contudo, seria necessário um crescimento de 16 milhões de habitantes para alcançar este resultado.

Taxa Geométrica de Crescimento

Uma maneira ainda mais simples de modelar a dinâmica da população é via uma equação diferencial que expressa o crescimento exponencial da população. Na prática, populações frequentemente exibem comportamentos deste tipo, crescendo ou decaindo exponencialmente a uma taxa fixa. Esta taxa fixa \(r\) pode ser interpretada como a taxa geométrica de crescimento (TGC) da população.

\[ P_{t} = P_{0}\times(1 + r)^{t} \]

Supondo, que a TGC observada entre os censos de 2000 e 2010, de 1,18%, permancesse constante durante os próximos doze anos, a população em 2022 deveria ser de 220 milhões. Usando uma estimativa mais conservadora de 0,97% (TGC entre 2009 e 2010) a população seria de 214 milhões - valor muito próximo ao previsto pelo mais complexo Método de Componentes Demográficas acima. Por fim, utilizando a estimativa da TGC do IBGE em 2010, de 0,88%, a população brasileira deveria crescer para 212 milhões. A TGC verifica pelo Censo foi de 0,52%, que resulta na população de 203 milhões verificada.

A discrepância do Censo

Comparando os dados da Projeção da População, de 2018, e do Censo Demográfico de 2022 podemos mensurar a discrepância entre os valores projetados e os efetivamente verificados. De maneira geral, as projeções superestimaram o crescimento populacional em todas as Unidades Federativas com exceção de Mato Grosso e Santa Catarina. Em alguns casos, como no Amapá a diferença foi de quase 18%: projetou-se uma população de 886 mil, mas verificou apenas 811 mil. Em termos absolutos, a maior diferença aconteceu no estado de São Paulo, onde o Censo encontrou um valor 2,5 milhões inferior ao projetado.

As causas da divergência

Nos termos da equação populacional acima, a divergência do Censo deve ser explicada por:

  1. Superestimação do número de nascimentos. Isto pode ter ocorrido em função da queda de renda e aumento de desemprego causado pela recessão de 2015-174 e também pela Pandemia5. Também pode ser o caso de que a taxa de fecundidade do Brasil diminuiu mais rápido do que o esperado.
  2. Subestimação do número de óbitos. A Pandemia trouxe muito mais óbitos do que qualquer modelo demográfico razoável poderia prever.
  3. Subestimação do fluxo migratório para fora do país. Desde a crise econômica, aumentou o número de emigrantes no Brasil e taxa de brasileiros que não voltaram ao país também subiu.

No Brasil, os fluxos migratórios são pequenos, relativamente ao tamanho da população. Em 2021, por exemplo, o saldo líquido migratório brasileiro foi negativo em cerca de 300 mil pessoas6, equivalente a cerca de 0,1% da população. Assim, o número de nascimentos e óbitos deve explicar a maior parte da diferença entre o valor estimado pelo Censo e o valor projetado anteriormente.

Nascimentos e Óbitos

As séries de nascimentos e óbitos, do Registro Civil, apontam que houve uma queda na tendência de nascimentos durante a última década7. Olhando para a tendência da série, vê-se que a crise econômica de 2015-17 parece ter tido impacto negativo no número de nascidos vivos. Mesmo depois da recuperação da crise, a série segue numa tendência de queda, que se acentua a partir da Pandemia.

Já a série de óbitos segue uma tendência estável de crescimento desde 2003. Houve um ligeiro aumento dos óbitos em 2015, mas rapidamente viu-se um retorno da série à sua tendência de longo prazo. Por fim, é notável como a Pandemia teve um efeito severo sobre o número de óbitos no país.

Modelando o comportamento da série de óbitos, pode-se elaborar uma espécie de contrafactual: isto é, pode-se ter uma estimativa de como teria sido o número de óbitos caso na ausência da pandemia.

No gráfico abaixo, a curva amarela mostra os valores preditos da série junto com intervalo de confiança de 95%. O modelo é treinado com os dados de janeiro de 2003 a dezembro de 2019. Nota-se como os valores previstos divergem dos valores observados a partir de abril de 2020. Ao longo do período, o número acumulado de óbitos, acima do previsto pelo modelo, supera 600 mil.

Comparando as projeções de curto prazo do IBGE para nascimentos e óbitos, divulgadas em 2018, com os dados mais recentes do Registro Civil, divulgados em 2022, pode-se ver como o número de nascimentos foi superestimado e o número de óbitos, subestimado. Ainda assim, a divergência entre os números não é grande o suficiente para explicar a diferença de 10 milhões de habitantes verificada pelo Censo. Grosso modo, houve cerca de 400 mil mortes a mais do que o projetado e 800 mil nascimentos a menos.

Pode-se também usar os dados do Censo de 2010 e atualizar os valores populacionais, ano a ano, usando os nascimentos e óbitos do Registro Civil. O economista Francisco Faria, no blog do IBRE, simulou este cenário e encontrou populações de 208,5 ou 212,9 milhões, a depender se usa-se o valor original ou revisado do Censo de 2010. De qualquer modo, ambos os valores estão acima do valor de 203 milhões.

Recentemente, o IBGE divulgou os resultados de Censo por grupos de idade o que nos permite fazer ainda mais uma comparação. Os valores projetados estão disponíveis em grupos quinquenais de idade-sexo até 80 anos. O primeiro gráfico abaixo mostra a pirâmide populacional observada no Censo de 2022; as colunas transparentes mostram o valor projetado em cada grupo: vê-se como o valor observado foi menor em praticamente todos os grupos.

O gráfico da direita mostra a diferença percentual entre o valor projetado e o valor observado em cada grupo de idade. É interessante notar que as projeções, aparentemente, superestimaram o número de novos nascidos vivos. Projetou-se quase 15 milhões de recém-nascidos, de 0 a 4 anos, mas verificou-se algo em torno de 12.7 milhões. O número de jovens e de adultos também foi superestimado, enquanto a população de 55 a 74 anos observada ficou muito próxima da projetada.

O futuro do Brasil

Não há consenso ainda que explique a discrepância verificada entre as projeções do IBGE e o valor auferido no Censo. Certamente, a causa será um misto dos três motivos apresentados acima: nascimentos, óbitos e fluxos migratórios. Somente com o tempo será possível entender melhor o que houve com o Censo de 2022. Ainda que os dados do Censo possam apresentar algum erro, a tendência geral demográfica é certa, o Brasil:

  1. Tem uma proporção cada vez maior de idosos em relação a jovens.
  2. Apresenta taxa de crescimento populacional decrescente.
  3. Em alguns anos vai começar a observar quedas na sua população.

Estes três fatos já são a realidade de países desenvolvidos como Itália, Coreia do Sul, Japão, Alemanha e tantos outros. Até agora nenhum país conseguiu reverter a queda da taxa de fecundidade, mesmo com generosos benefícios fiscais. Os poucos países ricos que conseguem manter algum crescimento populacional se beneficiam de grandes influxos de migrantes que, por sua vez, trazem desafios adicionais. O Brasil encontra-se numa posição delicada, pois ele chega ao fim do seu crescimento populacional com um PIB per capita ainda relativamente baixo; além disso, o Brasil, há muitos anos, é um país com fluxo migratório negativo, isto é, mais brasileiros emigram (saem) do país do que estrangeiros imigram para cá.

No próximo texto desta série vou explorar mais a fundo os dados por cidades e metrópoles. O envelhecimento da população e acúmulo de problemas urbanos em grandes cidades parece estar reduzindo o puxo destas metrópoles. Rio de Janeiro e Salvador, por exemplo, registraram perdas populacionais que, muito provavelmente, devem-se a fluxos migratórios internos.

Por fim, vale terminar o texto relembrando que os funcionários do IBGE são extremamente competentes e plenamente capacitados. O Censo sofreu, infortuitamente, cortes de orçamento severos e teve de ser atrasado devido à pandemia. Os dados do Censo de 2022, assim como dos Censos anteriores, serão revisados futuramente e, muito provavelmente, as discrepâncias mencionadas neste texto serão dirmidas.

Footnotes

  1. Recusas para entrevista não prejudicaram resultado final do Censo, diz IBGE (Folha SP)↩︎

  2. De 2010 a 2020 houve um aumento de 24,4% no número de imigrantes no Brasil, resultando numa população de 1,3 milhão. Isto é equivalent a 0,6% da população total do Brasil. Apesar do Brasil ter hospedado imigrantes de diversos países ao longo do século XX, atualmente o país tem um fluxo migratório negativo (mais brasileiros saem do país do que estrangeiros entram) e uma população de imigrantes bastante reduzida.↩︎

  3. Para uma referência simples veja Census dos EUA.)↩︎

  4. Existe alguma evidência de que recessões econômicas diminuem as taxas de fecundidade, sobretudo em países em desenvolvimento. Veja, por exemplo, este artigo sobre a Colômbia e este sobre a Grécia.↩︎

  5. De maneira geral, a Pandemia do Covid-19 teve um efeito negativo sobre as taxas de fecundidade e natalidade mundo afora. Em alguns países houve uma forte recuperação, mas em outros estas taxas seguem em níveis menores que os pré-pandêmicos. Link↩︎

  6. Taxa de brasileiros que saem do país e não voltam é a maior em 11 anos (Valor)↩︎

  7. A tendência das séries é estimada com uma média móvel centrada de 12 meses.↩︎